segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Caruaru por Leonardo Dantas



A Feira de Caruaru
“de tudo que há no mundonela tem pra vender...”
A freguesia em forma de distrito de paz, e sua igreja matriz é dedicada a Nossa Senhora das Dores: a cidade é a sede do município de seu nome, residência do juiz municipal; tem um escrivão privativo de órfãos, um dito do crime, que acumula os ofícios do cível e tabelião de notas, capelas e resíduos, um dito do júri e execuções criminais, um partidor e distribuidor, e um partidor e contador, tem uma coletoria geral que no exercício de 1860 a 1861 rendeu 2:125$485 rs. arrecadados e 116$400 rs. por arrecadar; uma coletoria provincial, um ajudante do procurador fiscal, que serve neste termo e no Bonito: tem um comissário vacinador, um delegado e uma subdelegacia de polícia, uma cadeira pública de instrução primária para o sexo masculino e outra para o feminino, uma delegacia e três comissários literários; tem uma agência do correio sujeita à repartição do Recife. Dá 14 eleitores e pertence ao quarto círculo eleitoral da província, do qual é cabeça. Manoel da Costa Honorato (1861).
Assim Manoel da Costa Honorato descreve Caruaru, pouco depois de ser elevada à cidade em 18 de maio de 1857 (Lei nº. 416), quando da publicação do seu Dicionário topográfico, estatístico e histórico da Província de Pernambuco em 1863.
Fora a primitiva fazenda de gado do século XVIII, depois povoação arte da freguesia de Santo Antão da Vitória (1794), o caminho natural das boiadas vindas dos currais do rio São Francisco para o litoral.
Situada às margens do rio Ipojuca, distando 140 km. do Recife, na estrada do Sertão, Caruaru foi, desde os seus primórdios, o centro comercial por excelência, reunindo comerciantes de gado e de gêneros do Bonito, Bezerros, Limoeiro, Vitória, Palmares, Canhotinho, São Bento do Uma, Altinho e do Brejo da Madre de Deus.
Escrevendo em 1905, o dicionarista Sebastião Vasconcelos Galvão, no seu Dicionário corográfico e estatístico de Pernambuco, cujo primeiro volume vem a ser publicado pela Imprensa Nacional do Rio de Janeiro em 1908, descreve a cidade como promissor pólo de comércio, salientando às suas grandes feiras, inclusive com a publicação de uma fotografia com a igreja de Nossa Senhora da Conceição cercada pelas barracas dos feirantes da época:Duas feiras, as quartas e sábados, abundantes em gêneros de todas às espécies e outra de gado vacum, nas terças-feiras, em trânsito para a cidade da Vitória. Ligada ao Recife por estrada de ferro, a partir de 2 de dezembro de 1895, situada a 557 m. acima do nível do mar, o município dos primeiros anos do século XX possuía uma população de 20.000 habitantes, 6000 dos quais residentes no perímetro urbano.
Detalhando o centro urbano da cidade, assinala o dicionarista a existência de 24 ruas espaçosas, cadeia pública (1901), escola estadual, estação ferroviária, capela do Bom Jesus do Monte (1901), ponte sobre o rio Ipojuca (1902), dois cemitérios, igreja matriz (1846) e dois outros templos dedicados a Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Rosário, associações culturais – Clube Literário, Sociedade Dramática e Banda Comercial Euterpe –, prédios de destaque (prefeitura, açougue público, abrigo de caridade, fábrica de óleos ), sendo coletadas 600 casas (15 das quais de dois pavimentos).
Na enumeração dos estabelecimentos comerciais, estavam relacionadas quatro padarias, um armazém de ferragens, treze estabelecimentos de secos e molhados e onze destinados a outros gêneros. A produção agrícola, em grande parte comercializada nas feiras semanais, constituía-se do algodão, milho, feijão, mandioca, caroços de algodão, fumo, mamona, queijos e, sobretudo, couros diversos que eram exportados em sua totalidade para o Recife.
O município registrava ainda fábrica de beneficiamento do algodão e extração de óleos vegetais, curtume e um grande número de engenhocas, produtoras de rapadura e açúcar bruto, registrando-se nesta época o início da cultura cafeeira nas fazendas das redondezas.Por sua invejável posição geográfica, Caruaru tornou-se o centro de desenvolvimento comercial mais importante do agreste pernambucano, com influência nos estados da Paraíba e Alagoas, o que fez com que para ali se deslocasse alguns dos importantes seguimentos da economia da região.Tudo em Caruaru passou a girar em torno de sua feira, não só do ponto de vista de centro comercial aglutinador, mas também nos seus mais diferentes aspectos culturais e sociológicos.
Pólo catalisador por excelência, para Caruaru afluiu famílias dos mais diferentes municípios, inclusive do próprio Recife, como é o caso do médico Adolpho Silva Filho (1892-1954) que lá chegou em 1913. Acompanhado de mulher e filho, recém-formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, iniciando em Caruaru a sua brilhante carreira de médico clínico, cirurgião e obstetra. Foi Silva Filho, como veio a ser conhecido, o responsável pela criação do Hospital São Sebastião, pelo Rotary Club e pelo Clube Intermunicipal de Caruaru, se mantendo a frente de sua clínica até os anos cinqüenta do século XX.
Por esses e outros aspectos, Caruaru parece espelhar na sua história social aquele magnetismo exercido pela sua grande feira semanal. Passou a ser uma terra não somente de comerciantes e agricultores, mas também de importantes nomes na literatura e no jornalismo.
Inspirado no dia-a-dia da Capital do Agreste o festejado escritor Mário Sette escreveu em 1927 o livro de contos Sombras de Baraúnas, onde traça perfis e conta fatos e acontecimentos da bucólica cidade interiorana. Outros nomes, como Austregésilo de Ataíde, Álvaro Lins e os irmãos Condé – Elísio, João e José Conde –, nascidos no início do século passado em Caruaru, se encarregaram de transformar o seu torrão natal na pátria dos sonhos.
A atmosfera de Caruaru encarregou-se de povoar os romances de José Condé, surgindo assim Terra de Caruaru (1960); Vento do amanhecer em Macambira (1962); Pensão riso da noite: Rua das Mágoas... (1966); chegando aos livros de Nelson Barbalho e ao cancioneiro popular.
Com tantos nomes divulgando o apelidado País de Caruaru, a sua famosa feira semanal passou a integrar o universo das letras tornando-se conhecida em todo Brasil. Da Baixinha à BaixinhaIndo pro Norte ou pro SuSe espaia por toda parte A Feira de Caruaru. Apoiado nos versos do poeta popular, o escritor Nelson Barbalho tenta explicar a grandiosidade do evento, que semanalmente ocupa uma área que vai Baixinha de Gregorinho, na margem do rio Ipojuca, se espalhando pelas ruas da Feira, do Comércio, da Festa, Quinze e assim ocupa todo o centro tradicional da cidade. Tão imenso espaço, observa Nelson Barbalho, “hoje em dia se torna estreito e apertado para, dentro de si, caber todas as feiras que integram e constituem a internacionalmente famosa Feira de Caruaru”.A Feira de CaruaruFaz gosto a gente verDe tudo que há no mundo Nela tem pra vender...A Feira de CaruaruAssim o caruaruense Onildo Almeida (1928 - ) inicia o seu baião descritivo da Feira de Caruaru, gravado pelo vozeirão de Luiz Gonzaga (1912-1989) em 1957, quando das comemorações do primeiro centenário da cidade de Caruaru.De tudo que há no mundo Nela tem pra vender...Ao desenvolver a letra desse poema, lá vamos nós revivendo as inúmeras e variadas paisagens que, mesmo nos dias de hoje, podem ser captadas numa caminhada ao longos dos muitos quilômetros por onde se espalha a singular a mais importante feira popular do Nordeste brasileiro; como bem observa Nelson Barbalho:A feira de Caruaru vale como um resumo formidável, um postal colorido, vibrante e movimentado, do Nordeste brasileiro em geral. Nela existe fartura quase em excesso – de frutas, de verduras, de carnes (verde e seca, de boi e de carneiro, de bode, de porco, de cavalo, de quaisquer outros bichos comestíveis), de farinhas-de-mandioca, de feijões dos mais variados, de matutos caricaturais, de cachaceiros divertidos, de doidos mansos, de mulheres boazudas, de bolos-de-goma, de alfenins gostosos feitos beijos roubados a moça donzela, de ervas medicinais, de passarinhos engaiolados, do diabo a quatro.Como se vê não se trata de uma só, mas de muitas feiras que se unem numa só paisagem atraindo gente dos mais variados municípios do Agreste, da Paraíba, do Ceará, das Alagoas, mesmo do Recife, que para lá vão em busca de produtos diversos e mais em conta, muito particularmente na área das confecções.
É a feira das frutas tropicais, seguida do artesanato em cestarias das mais variadas, de roupas feitas e confecções originárias de Santa Cruz do Capibaribe e de outros centro produtores – ... tem calça de alvorada que é pra matuto não andar nu –, móveis rústicos, antiguidades do século XVIII ou mesmo do século XIX, ferro velho e lá se vai pela rua afora.
Um festival de comedorias toma conta de outro trecho, com dezenas de toldos onde são servidos os mais diferentes pratos da cozinha regional. Almoços feitos em fogareiros e carvão, ou mesmo a gás engarrafado, comida temperada com muito coentro, cebolinho, cominho e folha de louro, espargem o seu cheiro a dezenas de metros, despertando assim o apetite do freguês.
Segue-se da feira de mangalhos (conjunto de produtos de fabricação caseira ou saídos de pequenas lavouras, que são vendidos em feiras e mercados do interior); do fumo picado, de rolo e rapé; das barracas de carne de charque (popularmente conhecida como carne do Ceará, relembrando as primitivas charqueadas do século XVIII); a feira das frutas (vendidas geralmente por cento ou dúzia), vão surgindo com o seu colorido diante dos nossos olhos, circundada pela feira da banana.
Não faltam as barracas do artesanato em couro ( chapéus de vaqueiro, surrões, selas, gibões, rédeas e arreios de montaria, mantas, coxim, bainhas); das redes, dos bordados de Pesqueira e Passira; das confecções de cama e mesa; dos calçados, das cutelarias e ferramentas e até uma barraca onde se pode adquirir algum bacamarte centenário da Guerra do Paraguai (!).
A presença dos artesãos na Feira de Caruaru seria um capítulo a parte, digno de figurar numa história do trabalho manual na região do agreste pernambucano. Ocupando barracas e/ou atendendo em suas próprias tendas e oficinas, lá vamos encontrar os mais hábeis artesãos dos mais diferentes materiais.
No âmbito das confecções, hoje o artesão foi substituído pela produção industrial de Santa Cruz do Capibaribe, de Caruaru e outras cidades; mas não faltam alfaiates e costureiras atendendo a clientela nos dias de feira.Torneiros e fundidores também têm o seu espaço, oferecendo peças em ferro e bronze, de utilidade no campo e na decoração do lar, produzidas em Gravatá, Caruaru, Campina Grande e outras da região. Não faltando ainda os ourives, produtos de funilaria (candeeiros, bacias, canecas, conchas), objetos de decoração, cerâmica utilitária (panelas, jarras, alguidar (vaso de barro, cuja borda tem diâmetro muito maior que o fundo), as oficinas de consertar tachos e panelas, os fabricantes de móveis de Gravatá e Bezerros, os fabricantes de brinquedos e uma gama infinita de outros artistas.
Ainda as barracas dos queijos, dos doces, dos bolos, das cocadas, do mel de abelha e do mel de engenho, do caldo de cana, da gelada (refresco de frutas cítricas), do raspa-raspa (gelo raspado adocicado com suco ou essência de frutas), dos perfumes, óleos e brilhantinas, das fazendas, e das chitas coloridas (tecido de algodão estampado), produtos de armarinho (linhas, botões, retroses, aviamentos para alfaiates e costureiras), castanhas de caju e do Pará, sem falar nas barracas de aguardente, onde geralmente se bebe com tira-gosto diversos.
O mercado da frinha, como são chamadas as barracas que estão a oferecer este produto extraído da mandioca, por si só já assusta o visitante, tal a variedade de farinhas, massas e gomas produzidas nas mais diferentes localidades da mata e do agreste pernambucano.Não esquecer a feira das carnes (de boi, de porco, de sol, de bode, de carneiro), de miúdos (vísceras diversas); que se comunica com a feira dos animais, com galinhas, marrecos, guinés, patos, perus, caprinos, suínos, ovinos e até mesmo gado em pé.
Do oitão da igreja de Nossa Senhora da Conceição, já se ouve o vendedor de folhetos em sua tenda. Na sua cantilena em voz alta, dirigida a um pequeno e atento auditório, ele relata, em linguajar ritmado, o seu “romance” mais novo.Minha amiga FlorisbelaAí vai esse papelEm cujas linhas revelaPor seres boa e fielComo se passou a noiteDa minha “lua de mel”........................................Nas proximidades, um pouco mais adiante, fez o seu ponto o chamado “Doutor Raiz”, com meizinhas (medicamento caseiro) que curam os males do corpo, do espírito e do coração, seguindo as barracas de ervas medicinais.
Não faltam os armarinhos, com os seus mostruários apinhados, de jóias das mais diversas, produzidas por ourives do Crato. Juazeiro do Padre Cícero e de Campina Grande.
Numa ponta de rua se aglomeram populares carregando máquinas de costura, bicicletas, motocicletas, animais e ali estão, debatendo em altas vozes, o valor dos seus bens na chamada feira do troca-troca; onde o dinheiro, quando aparece, é como troco ou complemento da transação.Alegrando a matutada e visitantes, vamos encontrar uma dupla violeiros, cantando versos em sextilhas, mourão e/ou quadrão (estrofe de oito versos de sete sílabas, cujo esquema de rima é aaabcccb ), de quando em vez, passando o chapéu na busca de alguns trocados.
Cantando e aplaudidos pelo seu povo, como tal como observara o nosso Capiba, lá estão eles... “vivendo de glórias / em pleno terreiro... São mais de dez mil barracas, espalhadas por todo centro da cidade, formando assim a mais importante feira popular da região.
Para lá acorre os matutos do Azevém, das Pitombeiras, do Pau Santo, de Lajedo do Cedro, de São Caetano da Raposa, do Jacaré, da Malhada de Pedra, do Brejo Novo, do Brejo da Mulata, da Serra dos Cavalos, do Pé da Serra do Mendes, da Terra Vermelha, do Brejo de Vertentes, da Preguiça, das Contendas, do Capim e, como não poderia deixar de ser, os “loiceiros” do Alto do Moura.Sim do Alto do Moura!
Nesta comunidade dos arredores de Caruaru surgiu, sob a direção do artista Vitalino Pereira dos Santos (1909-1963), todo imaginário de ums escola de cerâmica figurativa e imaginária, hoje conhecida em todo país. Algumas de suas peças integram importantes coleções bem como acervos de importantes museus, não somente do Brasil como de outros centros da Europa e dos Estados Unidos. Tem loiçaTem ferro veioSorvete de raspaQui faz jaúGelada, caldo de cana,Fruto de parma e mandacaruBonecos de VitalinoQui são conhecidos inté no suDe tudo que há no mundo Tem na Feira de Caruaru.Na sua modéstia, o Mestre Vitalino, como passou a ser conhecido, se tornou o maior divulgador da Feira de Caruaru.
Através da sua cerâmica imaginária e figurativa – retratando aspectos diversos da vida e do dia-a-dia da gente da roça –, ele criou mais de uma centena de motivos, modelando-os nos mais diferentes tamanhos e versões. Tornou-se, assim, o fundador de uma escola de ceramistas, hoje preservada através dos trabalhos de mais de uma centena de seus seguidores.
Com seus trabalhos, produzidos em vida, ele tornou o pólo artístico de Caruaru conhecido no Brasil e no exterior. Sua arte no barro mereceu comentários de David Nasser na revista O Cruzeiro; foi levada ao cinema pelas lentes de Jean Manzon; alcançou a literatura através dos irmãos Condé, no romance e nas páginas do Jornal de Letras (Rio de Janeiro); alcançou as páginas da revista Manchete, além das reportagens especiais em jornais de grande circulação, do Recife, São Paulo e Rio de Janeiro; através dos bonecos pelos seus dedos modelados, Caruaru se fez presente no mundo inteiro.
Como se não bastasse o lado econômico, a Feira de Caruaru tem a sua marca cultural registrada dentro e fora do Brasil, tão bem sintetizada nos versos do poeta popular:A Feira de CaruaruFaz gosto a gente verDe tudo que há no mundo Nela tem pra vender...A Feira de Caruaru!


* Jornalista, editor, historiador, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano e Conselheiro do Conselho de Cultura do Estado de Pernambuco.

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